TEMA 756 DA REPERCUSSÃO GERAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Da necessária interpretação do princípio da não cumulatividade conforme à Constituição

A cobrança das contribuições ao PIS e a COFINS encontra fundamento constitucional no artigo 195, inciso I, alínea “b” da Constituição da República:

 

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

(…)

b) a receita ou o faturamento; (…)

 

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, foi introduzido o seguinte parágrafo ao artigo 195 transcrito acima:

 

Art. 195. (…)

§ 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as
contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão
não-cumulativas
.

(…)

 

Como se nota, à lei coube apenas a definição dos “setores da atividade econômica” para os quais PIS e COFINS seriam não cumulativos, e essa escolha do legislador está refletida nos artigos 8º da Lei 10.637/02 e 10 da Lei 10.833/03:

 

Art. 8º Permanecem sujeitas às normas da legislação da contribuição para
o PIS/Pasep, vigentes anteriormente a esta Lei [Lei 10.637/02], não se lhes aplicando as disposições dos arts. 1º a 6º: (…)

Art. 10. Permanecem sujeitas às normas da legislação da COFINS, vigentes
anteriormente a esta Lei [Lei 10.833/03], não se lhes aplicando as disposições
dos arts. 1º a 8º: (…)

 

Em vista do teor dos artigos 8º da Lei 10.637/02 e 10 da Lei 10.833/03, pode-se dizer, portanto, que a não cumulatividade de PIS e COFINS passou a ser a regra geral; as exceções, ou seja, as pessoas jurídicas e os tipos de receitas que continuariam sujeitos à cumulatividade das contribuições foram listados taxativamente nesses artigos.

 

Devidamente definidas as pessoas jurídicas e os tipos de receitas sujeitas a um e outro regimes, restou aos contribuintes entender o que seria exatamente a não cumulatividade de PIS e COFINS, uma vez que a EC 42/03 nada mais dispôs a respeito. Como visto, o parágrafo introduzido no artigo 195 da CF limitou-se a dispor que para determinados setores de atividade econômica as contribuições “serão não-cumulativas”.

 

Diante disso, o entendimento da não cumulatividade de PIS e COFINS passa inexoravelmente pela compreensão da não cumulatividade tratada em nível constitucional que é característica de outros dois impostos que são praticamente sinônimos desse tipo de regime de apuração: o Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços e o Imposto sobre
Produtos Industrializados, ICMS e IPI, respectivamente.

 

Ao olhar leigo do contribuinte (que diga-se, não é obrigado a entender o manicômio tributário que vivenciamos), passa despercebido que o suporte constitucional para a instituição das exações dispõe claros limites ao Poder de Tributar ao afirmar que cabe a lei definir os setores da economia em que as contribuições serão não-cumulativas.
Ou seja, em nenhum momento a Constituição da República dispõe que cabe a lei definir os dispêndios que serão dedutíveis para fins da não-cumulatividade.

 

As Leis 10.637/02 e 10.833/03, todavia, trouxeram uma série de limitações indevidas ao aproveitamento de créditos das contribuições, tornando letra morta o art. 195, § 12, da Carta Política:

 

Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:

I – bens adquiridos para revenda, exceto em relação às mercadorias e aos produtos referidos:

(…)
II – bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes, exceto em relação ao pagamento de que trata o art. 2º da Lei nº 10.485, de 3 de julho de 2002, devido pelo fabricante ou importador, ao concessionário, pela intermediação ou entrega dos veículos classificados nas posições 87.03 e 87.04 da TIPI;
(…)

IV – aluguéis de prédios, máquinas e equipamentos, pagos a pessoa jurídica, utilizados nas atividades da empresa;

V – valor das contraprestações de operações de arrendamento mercantil de pessoa jurídica, exceto de optante pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – SIMPLES;

 

VI – máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, adquiridos ou fabricados para locação a terceiros ou para utilização na produção de bens destinados à venda ou na prestação de serviços.

VII – edificações e benfeitorias em imóveis de terceiros, quando o custo, inclusive de mão-de-obra, tenha sido suportado pela locatária;

VIII – bens recebidos em devolução, cuja receita de venda tenha integrado faturamento do mês ou de mês anterior, e tributada conforme o disposto nesta Lei.

IX – energia elétrica e energia térmica, inclusive sob a forma de vapor, consumidas nos estabelecimentos da pessoa jurídica.

X – vale-transporte, vale-refeição ou vale-alimentação, fardamento ou uniforme fornecidos aos empregados por pessoa jurídica que explore as atividades de prestação de serviços de limpeza, conservação e manutenção.

XI – bens incorporados ao ativo intangível, adquiridos para utilização na produção de bens destinados a venda ou na prestação de serviços.

(…)

§ 2º Não dará direito a crédito o valor:

I – de mão-de-obra paga a pessoa física; e

II – da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou não alcançados pela contribuição.

§ 3º O direito ao crédito aplica-se, exclusivamente, em relação:

I – aos bens e serviços adquiridos de pessoa jurídica domiciliada no País;

II – aos custos e despesas incorridos, pagos ou creditados a pessoa jurídica domiciliada no País;

 

 

 

 

Salta aos olhos uma característica comum de todos os incisos do caput do artigo 3º transcritos acima: todos, sem exceção, limitam o direito à dedução de créditos das exações, em clara afronta ao texto constitucional.

 

Não são quaisquer bens adquiridos pelo contribuinte que autorizam o aproveitamento de créditos; apenas aqueles adquiridos “para revenda”. Não são quaisquer aluguéis de prédios que autorizam o aproveitamento de créditos; apenas aqueles “pagos a pessoa jurídica”. Não são quaisquer uniformes fornecidos aos empregados que autorizam o aproveitamento de créditos; apenas aqueles fornecidos por “pessoa jurídica que explore as atividades de prestação de serviços de limpeza, conservação e manutenção”.

 

O absurdo dessas limitações prescinde até mesmo do conhecimento das características constitucionais de um regime de tributo não cumulativo. Para conseguir gerar receita, uma empresa adquire bens apenas para revenda? Para conseguir gerar receita, faz alguma diferença se o aluguel é pago para uma pessoa jurídica ou para uma pessoa física? Para conseguir gerar receita, apenas as empresas de serviços de limpeza, conservação e manutenção fornecem uniformes para seus empregados? E assim por diante.

 

Além disso, devem ser destacadas também as amplas restrições listadas nos §§ 2º e 3º do artigo 3º, segundo as quais não podem ser aproveitados créditos sobre gastos em geral (sejam custos ou despesas) com pessoas físicas e com pessoa jurídicas não domiciliadas no País e com bens e serviços não sujeitos ao pagamento das contribuições.

Para essas restrições cabe rigorosamente o mesmo exercício já feito acima. A partir do momento em que toda e qualquer receita compõe, a priori, a base de cálculo de PIS e COFINS, de que importa se os custos e despesas (o que inclui a aquisição de bens e serviços) são incorridos com pessoas físicas ou jurídicas não domiciliadas no País? À medida em que os dispêndios incorrem para viabilizar a atividade econômica do contribuinte e consequentemente, viabilizar a geração de receita, tais gastos devem ser considerados para fins de aproveitamento de créditos, independentemente de os beneficiários desses gastos serem pessoas físicas ou jurídicas, domiciliadas no País ou não, e de os tributarem ou não, ou qualquer característica de outros contribuintes envolvidos na cadeia produtiva.

Nessa mesma linha, deve ser citado também o artigo 31, § 3º, da Lei 10.865/04:

 

Art. 31. É vedado, a partir do último dia do terceiro mês subseqüente ao da publicação desta Lei, o desconto de créditos apurados na forma do inciso III do § 1º do art. 3º das Leis nºs 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, relativos à depreciação ou amortização de bens e direitos de ativos imobilizados adquiridos até 30 de abril de 2004.

(…)

§ 3º É também vedado, a partir da data a que se refere o caput, o crédito relativo a aluguel e contraprestação de arrendamento mercantil de bens que já tenham integrado o patrimônio da pessoa jurídica.

Tem-se aí outra limitação indevida ao aproveitamento de créditos de PIS e COFINS, dialogando com a limitação de creditamento sobre aluguéis de prédios, máquinas e equipamentos, pagos apenas a pessoas jurídicas. Qual pode ser a justificativa – sob o viés próprio da não cumulatividade – o constitucional – para que um contribuinte não possa aproveitar créditos das contribuições no pagamento do aluguel de um imóvel que, por qualquer motivo, foi e não é mais de sua titularidade?

 

Ademais, é sabido que todo e qualquer tributo possui três elementos fundamentais: (i) alíquota, (ii) base de cálculo e (iii) fato gerador. Por sua vez, o fato gerador apto ao preenchimento da regra matriz de incidência tributária do PIS e da COFINS é o auferimento de receita, assim como a circulação de mercadorias ou prestação de (alguns) serviços é o fato gerador do ICMS, a produção de determinado produto, para o IPI, etc.

 

Ainda, a título de cautela, ressalta-se que o método da não cumulatividade prevista na Constituição para PIS/COFINS não confunde-se com a não cumulatividade dos impostos (ICMS e IPI), que por sua natureza escritural strictu sensu, pressupõe o repasse do encargo para o próximo da cadeia. Deve, portanto, ser destacado em idôneo documento fiscal. 

 

No entanto, em relação ao PIS/COFINS, utiliza-se o método subtrativo indireto (base contra base) ou receita x despesa. Aqui, a análise do contribuinte para definir pela possibilidade de crédito não é se o tributo está destacado e foi pago pelo contribuinte anterior na cadeia produtiva, ou se ele é utilizado como insumo, produto intermediário ou material de embalagem (como no IPI). Em tal sistemática, a análise é subjetiva ao contribuinte que é destinatário da despesa e via reflexa, do crédito, sendo que toda e qualquer despesas que ocorre para a geração de receita deve ser dedutível, através da inclusão na base de créditos e aplicação da alíquota básica de 9,25%.

Apesar das afrontas à Constituição materializadas pelas Leis 10.637/02 e 10.833/03, a Receita Federal do Brasil vai além, instituindo vedações através de atos infralegais, em nítida usurpação das prerrogativas que são próprias ao Poder Legislativo. Vale lembrar que nem mesmo o legislador ordinário poderia fazê-lo, cabendo ao Poder Constituinte Derivado a modificação da sistemática originalmente prevista, após (evidentemente) a devida observância aos demais Princípios Constitucionais Tributários, principalmente o Princípio da Anterioridade de Exercício, ou, no mínimo, a Anterioridade Nonagesimal. 

 

Em vista de tantas distorções e abusos cometidos pelo Fisco, o Supremo Tribunal Federal, em sua
função institucional de interpretar a Constituição, afetou o Recurso Extraordinário 841.979 como leading case do Tema 756, a fim de definir o conceito constitucional da não cumulatividade. As Recorrentes ao
Apelo Extremo argumentaram o seguinte:

 

(…)
a discussão trazida à apreciação desse E. STF remonta ao alcance do artigo 195,
§12, da Constituição Federal, que prevê a aplicação do princípio da não-cumulatividade à Contribuição ao PIS e à COFINS, sendo que sua delimitação representa, hoje, uma das mais importantes teses tributárias sob apreciação do Poder Judiciário e possui o condão de determinar os contornos de inúmeras teses
correlatas em que se discute os limites da atuação do legislador ordinário na concretização da sistemática não-cumulativa prevista constitucionalmente para
essas contribuições. (…)

Trata-se,
portanto, de discussão com nítidos contornos econômicos, que poderá impactar,
ainda, controvérsias paralelas, que envolvem os limites à fruição dos créditos de PIS/COFINS, inclusive o leading case do Superior Tribunal de Justiça que definiu, sob o rito dos recursos repetitivos, a controvérsia quanto ao conceito de insumo para fins de créditos de PIS e COFINS, o qual se encontra sobrestado até o julgamento do presente feito. (grifos no original).

 

Da decisão pela afetação da matéria controvertida se extrai o seguinte teor, ipsis litteris:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE. ART. 195, § 12, CF/88. PIS. COFINS. ARTIGO 3º, NOTADAMENTE INCISO II E §§ 1º E 2º, DAS LEIS Nºs 10.833/2003, 10.637/2002. ARTIGO 31, § 3º, DA LEI Nº 10.865/2004. RELEVÂNCIA DA MATÉRIA E TRANSCENDÊNCIA DE INTERESSES. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. Decisão: Tribunal, por maioria, reputou constitucional a questão, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestaram os Ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Roberto Barroso. O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencidos os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Teori Zavascki e Rosa Weber. Não se manifestaram os Ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Roberto Barroso.

A disputa tributária envolve nada menos que R$ 472,7 bilhões, sendo o maior risco fiscal do total de R$ 2,6 trilhões das 29 ações judiciais listadas pela AGU na Lei de Diretrizes Orçamentárias.

 

Para se mensurar o tamanho do problema para a União (e oportunidade para o contribuinte), a Tese do Século, que definiu que “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da COFINS” envolveu cifras na casa dos R$ 250 bilhões. Estamos falando de praticamente duas vezes o valor da maior derrota da Fazenda Nacional no Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal julgará, a partir de 18 de novembro de 2022, o Recurso Extraordinário 841.979, leading case do Tema 756 da Repercussão Geral. Em caso de procedência total ou parcial dos pedidos do contribuinte, não há qualquer dúvida que haverá modulação temporal, de modo a surtir efeitos ex nunc.

 

 

Deixando de lado a eterna paixão pela defesa dos direitos constitucionais dos contribuintes, esperamos (no mínimo) que a controvérsia seja solucionada com sólidos argumentos jurídicos, de modo que o interesse público não seja confundido com o interesse da Fazenda Pública.

A título reflexivo, destaca-se pensamento surpreendentemente moderno do Premiê Britânico durante a Segunda Guerra Mundial, Sir Winston Churchill, ao alertar que

“uma nação que tenta prosperar a base de impostos é como um homem com os pés num balde tentando levantar-se puxando a alça”.

John Masiero
Advogado Tributarista
OAB/RS 121.44123